quarta-feira, 28 de março de 2018

Sobre dias que poderiam não existir


Os ovos boiavam nas bolhas da água que fervia.
Dois.
Não se atentou ao tempo. A gema escorreu crua entre os dedos.
Sangue amarelo de um embrião que nunca existiu.
A cabeça doía há três dias.
Um dia, uma semana, um mês que era melhor não ter existido.
A vida escorria crua entre os dedos. Crua, sem preparo.
A tristeza de uma festa vazia.
A tristeza de um hospital lotado.
Não teve paciência de esperar o ovo cozinhar.
Odiava comidas cruas.
O ouvido zumbia.
Muito barulho por nada.
A vida toda.
Por nada.
Foi embora sem levar os anéis de ouro, os remédios de pressão, o creme de pitanga.
Todos vamos embora.
Não era hora.
Não teve paciência de esperar a vida amadurecer.
Ovos crus.
Sangue amarelo.
Nada de crisântemos. 
Esses dias poderiam não existir.

Rafael Freitas



segunda-feira, 26 de março de 2018

Menino Passarinho

- Mãe! Mãe!
Entra correndo, pingando suor.
Respira, tenta se acalmar.
- Eu vou morrer numa sexta-feira, no mês de abril, daqui uns 73 anos, mais ou menos.
- ?
- E quero um velório igual ao pai do avô Felipe. Sem caixão. Deitado em cima da mesa. Sem caixão. Caixão é feio, você não acha?
- Mas filho...
- Ah, e quero também um terno cinza claro, igual o do avô Felipe. Camisa branca sem gravata. E não pode esquecer que é sem sapatos. Pés descalços.
A mãe até tenta entrar na história:
- E vai ter flores?
- Não pensei nas flores ainda. Mas eu quero um disco dos Beatles tocando, igual o avô Felipe gostava.
- Mas você nem ouve muito Beatles.
- Quando eu ficar mais velho vou ouvir.
- E o que vai colocar no epitáfio?
- O quê?
- O que vai escrever no seu túmulo?
- Ah!!! Um poema do Drummond ou do Mário Quintana. Igual o avô Felipe lia pra mim. Eu gosto de poesia. Das poesias que o avô Felipe lia.
- Qual poema?
- Ah... Pode ser aquele do passarinho.
- Eles passarão, eu passarinho...
- Todos esses que aí estão atravancando o meu caminho! Tá vendo, mãe, eu decorei!
- Esse se chama Poeminho do Contra do Mário Quintana.
- Eu sei.
- E pra quê essa pressa toda em morrer? Você só tem oito anos!
- Não é pressa. Um homem prevenido vale por dois. Avô Felipe dizia sempre isso. Sinto saudades dele.
- Eu também.
- Ele me ensinou que há poesia em tudo. Até na morte. No velório disseram que ele morreu como um passarinho...
- E você quer morrer como um passarinho também?
- Não. Eu quero viver. Eles passarão, eu passarinho.

                                                              Rafael Freitas



sexta-feira, 9 de março de 2018

Eu sei


Voz de chamar a atenção:
- VOCÊ NÃO FEZ A TAREFA! DE NOVO! A PROFESSORA FALOU QUE VOCÊ ANDA MUITO DISTRAÍDO! O QUE ESTÁ ACONTECENDO?
- EU NÃO QUERO!
- COMO ASSIM NÃO QUER? VOCÊ NÃO TEM QUE QUERER! É PRA FAZER E PRONTO!
(com cara de choro) – É QUE EU JÁ SEI ESSAS COISAS!
Pausa.
Pausa.
Pausa.
- Eu sei que você sabe...
Essa história acaba assim: com um abraço apertado de conforto, como canção de acalanto, compreensão e amor se encontram.

                                                  Rafael Freitas




quarta-feira, 7 de março de 2018

Estamos todos atrasados


O tempo passa.
Quase dois litros d’água nesse calor infernal.
Os anos passam rápido, as horas nem tanto.
O dia parece não ter fim. A vida logo tem seu fim.
Depositaram pessoas fora da visão, enxergar incomoda.
Mais um copo d’água. Mais um descontentamento.
Existe essa vida, que nem amo, nem odeio, não valorizo, nem desprezo.
Apenas mais uma vida.
Talvez Deus não perdoe pessoas como eu. Pessoas que não dão valor.
Justificaram massacres pela bíblia.
Não, não foi no século XVII.
Essa semana.
A dor não incomoda mais ninguém.
É só justificar que tudo passa.
Passa pra quem vê, passa pra quem ouve, não passa pra quem vive.
Temos tão pouco tempo é o que dizem.
Realmente, estamos todos atrasados.

                                                                     Rafael Freitas

“Cinco extinções em massa
Quatrocentas humanidades
E eu com esses números?
Solidão a dois
Dívida externa
Anos luz
Aos 33 Jesus na cruz
Cabral no mar aos 33
E eu... o que faço com esses números?”
HG